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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS AUTORIZA ANTECIPAÇÃO DE PARTO DE FETO ANENCEFÁLICO



APELAÇÃO. PEDIDO DE INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO. FETO ANENCÉFALO E COM MÚLTIPLAS MAL-FORMAÇÕES CONGÊNITAS. INVIABILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA COMPROVADA POR EXAMES MÉDICOS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 128, I, DO CÓDIGO PENAL, POR ANALOGIA IN BONAM PARTEM.
1.         Comprovadas por variados exames médicos a anencefalia e as múltiplas mal-formações congênitas do feto, de modo a tornar certa a inviabilidade de vida extra-uterina do nascituro, é possível a interrupção da gestação com base no Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, por analogia in bonam partem, no artigo 128, I, do Código Penal. No caso dos autos, exames médicos demonstram, inequivocamente, estar o feto com seus órgãos vitais (encéfalo, coração, estômago, fígado e alças intestinais) em contato com o líquido amniótico, para fora da caixa torácica.
2.         O aborto eugênico, embora não autorizado expressamente pelo Código Penal, pode ser judicialmente permitido nas hipóteses em que comprovada a inviabilidade da vida extra-uterina, independente de risco de morte da gestante, pois também a sua saúde psíquica é tutelada pelo ordenamento jurídico. A imposição de uma gestação comprovadamente inviável constitui tratamento desumano e cruel à gestante.
3. Parecer favorável do Ministério Público, nas duas instâncias.

RECURSO PROVIDO.

APELAÇÃO CRIME: TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL

Nº 70040663163: COMARCA DE PELOTAS

S. B. S.: APELANTE
MINISTERIO PUBLICO : INTERESSADO

DECISÃO MONOCRÁTICA
Vistos.

Trata-se de recurso de apelação interposto por S. B. S., em face de sentença que julgou improcedente pedido por ela formulado de alvará para interrupção de gestação diante da comprovada inviabilidade de desenvolvimento de vida extra-uterina.

Intimado, o Ministério Público emitiu parecer pelo deferimento do pedido da requerente (fls. 37 a 41).

Sobreveio decisão de indeferimento do pedido, por ausência de previsão legal a autorizar a interrupção da gravidez (fls. 43 e 44).

Em face dessa decisão, a requerente interpôs, tempestivamente, recurso de apelação (fl. 45), postulando, nas suas razões recursais, autorização para submeter-se a procedimento cirúrgico de interrupção da gestação e/ou antecipação de parto, com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (fls. 46 a 54).

O Ministério Público de 2ª instância opinou pelo provimento do recurso (fls. 57 a 59).

É o relatório.

Passo ao exame do mérito.

De início, destaco que, considerada a urgência da situação em concreto, em especial em razão do adiantado estágio da gestação da requerente (atualmente com 29 semanas), bem como diante do risco de possível ocorrência de lesão grave e irreparável, entendo ser o caso de julgamento monocrático do presente recurso, sob pena de, assim não procedendo, estar sendo negada à requerente, por via indireta, a prestação jurisdicional.

Com efeito, a próxima sessão de julgamento desta Câmara Criminal está aprazada para o dia 13.01.2011. Assim, afigura-se absolutamente inadequado, diante da urgência do caso, imprimir ao feito o trâmite ordinário e adequado aos recursos de apelação.

Decido, pois, monocraticamente.

Examinando os autos, verifico estar a requerente na 29ª semana de gestação. Segundo consta da sua inicial, exames comprovam que o feto está com seus órgãos vitais (coração, fígado, estômago e alças intestinais) para fora da caixa torácica, em contato com o líquido amniótico, assim como o encéfalo, que está sem a proteção da tábua óssea craniana.

Trata-se, pois, de feto anencéfalo e com multimalformação, pois apresenta encefalocele, ectopia cordis e gastroquisis, mal-formações incompatíveis com a vida extra-uterina. Os documentos das fls. 27 a 32 não deixam nenhuma dúvida quanto à inviabilidade da vida extra-uterina, conforme alegado pela autora.

O caso retrata hipótese do denominado aborto eugênico, que, conquanto não contemplado expressamente no artigo 128, I, do Código Penal, constitui, segundo a doutrina majoritária, causa supralegal de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. Neste sentido, por todos, Delmanto (Código Penal comentado, p. 470).

A propósito, já me manifestei em artigo intitulado Autorização judicial para interrupção da gravidez: aborto eugênico, necessário e sentimental, publicado na Revista dos Tribunais, v. 794, Dez./2001, p. 486-494, o qual transcrevo, na parte que interessa:

            "A interrupção da gravidez envolve a discussão sobre o bem jurídico mais valioso na natureza, ou seja, a vida, protegido pelo artigo 5º,  caput, da Constituição Federal, e também a saúde física e mental. Entretanto, sempre que em conflito - gestante/feto -, os bens jurídicos merecem uma consideração valorativa global  e ponderativa .
            No artigo 124, o Código Penal pune o auto-aborto numa dupla perspectiva: provocação do abortamento pela gestante ou admissão que outrem lho provoque. Já o artigo 125 do Código Penal pune o aborto quando provocado sem o consentimento da gestante. Esse dissentimento, tanto pode ser real - com emprego de violência, por exemplo -, como presumido - gestante menor de 14 anos ou débil mental, por exemplo. A outra hipótese punível é a da provocação do aborto com o consentimento expresso ou circunstancial da gestante - aborto consensual - , previsto no artigo 126 do Código Penal.
            Os dois permissivos legais excluem a ilicitude da conduta, pois a norma legal refere que são impuníveis o aborto necessário e o sentimental. Na hipótese do aborto necessário - não há outro meio para salvar a vida da gestante -, as normas gerais da excludente de ilicitude pelo estado de necessidade autorizam a conduta, independentemente da existência do permissivo específico do artigo 128, I, do Código Penal.
            Entretanto, as normas gerais do estado de necessidade podem não resolver a problemática do aborto sentimental - estupro - e nem do aborto eugênico, na medida em que, nessas duas hipóteses, em princípio, não temos dois bens jurídicos numa situação de perigo, e da discussão da razoabilidade do sacrifício do bem ameaçado. 
É de se dizer em princípio, pois a mesma situação fática concretizada pode abarcar, ao mesmo tempo, a hipótese do perigo de vida da gestante e da deformidade fetal. Esta foi a situação enfrentada pela Câmara Especial Criminal do Tribunal de Justiça  na apelação n. 70002111508, e no agravo de instrumento n. 70002099836, cujo relator foi o Desembargador Carlos Cini Marchionatti. Além do diagnóstico de malformação do feto, gravemente comprometido por problemas que ocasionariam sua morte ainda durante a gestação ou logo após ao seu nascimento, ficaram demonstrados os riscos à gestante, inerentes à manutenção da gravidez.
No caso do aborto sentimental, não sendo possível o reconhecimento da excludente típica especial, poderia ser reconhecida uma excludente supralegal de culpabilidade, ou seja,  da inexigibilidade de conduta diversa.  Esta escusativa de terceiro patamar,  poderia ser aplicada também nas hipóteses do abortamento eugenésico,  sempre que se entender em não aplicar a causa supralegal de exclusão da ilicitude, dentro de uma concepção material do conceito. Não é exigível da mulher que mantenha a gestação de um feto que não chegará à vida extra-uterina, ou que a venha perder logo após o nascimento.  Isto significa dar um tratamento desumano e cruel à gestante, em prejuízo de sua saúde física e mental, também garantida na Constituição Federal - artigo 196. Ademais, a estes embriões ou fetos não cabe outorgar-lhes a condição de nascituro.
Partindo-se do conceito material de ilicitude, uma das conseqüências é a admissão de causas supralegais de exclusão do ilícito, podendo ser integralizado o critério eugênico no artigo 128, I, do Código Penal. É de ser dito que o princípio de legalidade penal se aplica às normas incriminadoras, limitadoras da potestade punitiva, mas não às permissivas, eis que protetivas dos direitos e das liberdades fundamentais. 
            Não é qualquer anomalia fetal que induz à interrupção da gravidez, mas aquela que inviabiliza a vida extra-uterina, isto é, que oferecem um grau de certeza de que não haverá sobrevida. Isto ocorre por exemplo nos casos de anencefalia  - ausência da abóbada craniana, estando os hemisférios cerebrais ausentes ou representados por massas pequenas que repousam na base - e acrania - ausência total ou parcial do crânio.
Os modernos métodos para apurar a situação do embrião ou feto, nos faz pensar sobre a origem biológica do ser humano e sobre o conteúdo substancial do direito à vida.
            Na impossibilidade espacial ou temporal para que o médico realize o procedimento, terceiras pessoas, como por exemplo uma enfermeira, um farmacêutico, poderão interromper a gravidez nos casos de iminente perigo de vida à gestante, diante da norma geral prevista no artigo 24 do Código Penal. Contudo, no caso do aborto sentimental, em princípio, não existe norma permissiva da parte geral que o autorize, devendo ser realizado exclusivamente por médico  - requisito subjetivo específico necessário. Tanto a enfermeira como o farmacêutico, ou terceira pessoa, poderiam atuar sob o abrigo da inexigibilidade de outra conduta, causa excludente da culpabilidade. "

Com efeito, entendo ser absolutamente desumano e, via de consequência, constituir uma hipótese de concreta violação ao Princípio da dignidade da pessoa humana, reitor da Constituição Federal vigente, a imposição, por parte do Estado e direcionada à mulher, da manutenção de uma gravidez inviável e sem sentido, posto que cientificamente comprovada a impossibilidade de vida extra-uterina do feto.

A questão, aqui, não é sequer de ponderação entre dois bens jurídicos, pois não há que se falar em vida do feto, na concepção material da expressão (a vida não é viável).

Com efeito, a proteção legal da vida intra-uterina só tem razoabilidade lógica na medida em que existe uma expectativa de vida extra-uterina. A lei tutela a vida do feto pois advirá dele uma pessoa, um sujeito de direitos. Assim, havendo provas técnicas robustas a indicar ser inviável a vida extra-uterina, carece de razoabilidade a tutela penal do nascituro.

Além disso, a imposição da manutenção de uma gestação fadada ao insucesso gera abalos psíquicos de ordem inimagináveis na gestante e contraria sua liberdade de autodeterminação, afigurando-se uma situação de violência física e psicológica.

Entendo, por isso, ser o caso de autorizar a interrupção da gestação, na linha do entendimento pacificado no âmbito desse Tribunal de Justiça, pois suficientemente comprovada a inviabilidade de vida extra-uterina do feto, dadas as múltiplas mal-formações constatadas nos vários exames realizados. 

Isso posto, dou provimento ao recurso para autorizar a interrupção da gestação da requerente, com base no Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e no artigo 128, I, do Código Penal, por analogia in bonam partem.

Expeça-se, nesta data e com urgência, alvará, nos termos do pedido constante na inicial, encaminhando-se cópia da decisão ao juízo de origem.

Porto Alegre, 30 de dezembro de 2010.


DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI,
Relator.