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segunda-feira, 13 de junho de 2011

DOUTRINA - A CRIANÇA NO NOVO DIREITO DE FAMÍLIA

Maria Regina Fay de Azambuja – Procuradora de Justiça do Ministério Público do RGS, Especialista em Violência Doméstica pela USP, Mestre em Direito pela UNISINOS, Sócia do IARGS, IBDFAM e SORBI

(escrito em maio.2005)

“O homem, desde antes de seu nascimento e para além da morte, está preso na cadeia simbólica que fundou a linhagem, antes que nela seja bordada a história”.

J. Lacan



INTRODUÇÃO

Com a vigência da Constituição Federal de 1988, marco referencial da instituição do princípio da dignidade humana, novo cenário se descortina no país, com reflexos que atingem diversas áreas da vida do homem contemporâneo, tanto na esfera pública como privada. A proteção aos direitos humanos, fundamento do Estado Democrático de Direito, passa, doravante, a embasar a organização da nação brasileira.

De outro lado, o art. 227 da Constituição Federal de 1988 elucida o compromisso do Brasil com a Doutrina da Proteção Integral, assegurando às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos, de pessoas em desenvolvimento e de prioridade absoluta. Inverteu-se, desde então, o foco da prioridade. No sistema jurídico anterior, privilegiava-se o interesse do adulto. Com a Nova Carta, o interesse prioritário passa a ser o da criança.

A mudança de paradigmas tem exigido a substituição de práticas que caracterizaram a Doutrina da Situação Irregular, representada pelo segundo Código de Menores, por ações que garantam o melhor interesse da criança, segundo as disposições trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Os reflexos da norma abrangem não só as situações que são levadas às Varas da Infância e Juventude, casos em que a situação de risco a que a criança está exposta é flagrante, mas, igualmente, os feitos que tramitam nas Varas de Família, quando, por vezes, os maus-tratos e a violência vêm envoltos em artimanhas construídas pelo mundo adulto, notadamente pelo pai e pela mãe do infante, não raro com a conivência dos advogados contratados para defender os genitores litigantes.

O presente artigo busca enfocar a Doutrina da Proteção Integral, dentro do contexto do novo Direito de Família, com ênfase no exame das questões que envolvem a garantia do direito à convivência familiar, na tentativa de, quiçá, alertar os profissionais que atuam na área para a imensa responsabilidade que sobre eles recai quando estão diante de um caso em que haja criança envolvida.

I. A CRIANÇA NO NOVO DIREITO DE FAMÍLIA

A família de hoje, pode-se afirmar, não apresenta a mesma configuração da família de séculos anteriores. A mudança de cultura, de hábitos e as exigências da vida contemporânea provocaram alterações, não só no dia a dia das famílias, como também na sua própria concepção legal.

Na Roma Antiga, a palavra família significava “o conjunto de empregados de um senhor”; “o pertencimento a uma família era determinado mais pela autoridade a que a pessoa estava submetida do que pelos laços de sangue”.  Já no decorrer dos séculos XVI e XVII, “os dicionários franceses e ingleses traziam definições de família ora pontuadas na questão da co-habitação, ora na do parentesco e da consangüinidade”.  Na pós-modernidade, a família, “mais do que uma unidade emocional, constitui uma unidade sociológica, incumbindo-se de transformar organismos biológicos em seres sociais”, cabendo aos pais a responsabilidade pela transmissão de padrões culturais, valores ideológicos e morais.  Em outras palavras, a família pode ser vista como “um caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e consolidação em cada geração, que se transforma com a evolução da cultura, de geração para geração”.

A Constituição Federal de 1988 define a entidade familiar como a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (art. 226, §§ 1º e 2º); a constituída pela união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (art. 226, § 3º), bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º).

A família, sob o ponto de vista jurídico, é constituída pelo conjunto de pessoas ligadas pelo casamento, pela união estável, pelo parentesco ou, ainda, pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.  Com o passar do tempo, “a imagem da família-instituição dá lugar à família funcionalizada à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida, na medida em que cumpra com o seu papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários”.  O ente familiar “é um corpo que se reconhece no tempo; uma agregação histórica e cultural como espaço de poder, de laços e de liberdade” ; como fato e fenômeno, “antecede, sucede e transcende o jurídico”.  A família pode ser entendida como “uma estruturação psíquica, onde cada um dos seus membros ocupa um lugar, uma função”.  De qualquer forma, o direito à convivência familiar significa também “o direito de ser amado e de, conseqüentemente, aprender a amar o outro”.

Indiscutivelmente, o Direito de Família

é o mais humano de todos os ramos do direito; em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico das exclusões, é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cujas bases e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania.

No atual Direito de Família, “é preciso verificar novos sujeitos em face de alguns direitos constitucionais” , sendo que, “nessa nova perspectiva, são retomadas categorias fundantes para compreender as transformações que se passam e que sugerem revelar transição” (...), “não há mais a família no sentido clássico”, mas, na essência, o fenômeno espelhando o que têm de central na família: “os nós desatando-se, mas não o ninho”.

Pela sistemática adotada pelo Código Civil de 2002, pode-se afirmar que o Direito de Família vem disciplinado através de um texto caracterizado por uma maior liquidez, passando a contemplar: a) o direito pessoal, onde se incluem o casamento e as relações de parentesco; b) o direito patrimonial, que se ocupa do regime de bens entre os cônjuges, do usufruto, da administração dos bens dos filhos menores, dos alimentos e do bem de família; e, em título distinto, c) a união estável; a tutela e a curatela, através das disposições contidas nos artigos 1.511 a 1.783.

Partindo dos ditames constitucionais da dignidade humana, bem como da Doutrina da Proteção Integral à criança e ao adolescente, o Direito de Família, suas práticas e seus novos desafios, como as inseminações e fertilizações artificiais, os úteros de aluguel, as cirurgias de mudança de sexo, os relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo e a clonagem de células precisam ser constantemente repensados, lembrando que “o reconhecimento da dignidade do ser humano é um dos princípios mais antigos e, talvez mesmo, latente da civilização, desde seus primórdios”.  Na expressão de Sergio Resende de Barros,

A dignidade humana é versão axiológica da natureza humana. Mas, ambas, igualmente dóceis à malversação entre si, se não forem fixadas à substância histórica que as comunica: a preservação da humanidade em tudo o que ela é comum e essencial, vale dizer, a preservação da comunidade humana fundamental.

Alicerçado no contexto constitucional vigente, no Estatuto da Criança e do Adolescente e nos princípios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, é que o novo Direito de Família há de construir seus caminhos, em especial, quando, nos conflitos que examinar, houver criança envolvida.

Entre outras diretrizes, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança  afirma: o direito de a criança conhecer e conviver com seus pais, a não ser quando incompatível com seu melhor interesse; o direito de manter contato com ambos os pais, caso seja separada de um ou de ambos; as obrigações do Estado, nos casos em que tais separações resultarem de ação do Poder Judiciário, assim como a obrigação do estado de promover proteção especial às crianças desprovidas do seu ambiente familiar, assegurando ambiente familiar alternativo apropriado ou colocação em instituição, considerando sempre o ambiente cultural da criança.

Ao debruçar-se sobre a Convenção, menciona Miguel Cillero Bruñol:

A convenção representa uma oportunidade, certamente privilegiada, para desenvolver um novo esquema de compreensão da relação da criança com o Estado e com as políticas sociais, e um desafio permanente para se conseguir uma verdadeira inserção das crianças e seus interesses nas estruturas e procedimentos dos assuntos públicos”.

Não há como deixar de ressaltar, dentro do contexto histórico, a postura de vanguarda do Brasil, ao assumir, em 1988, o compromisso com a Doutrina da Proteção Integral, através do art. 227 da Constituição Federal. Portanto, mesmo antes da aprovação do texto que deu origem à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a nação brasileira já se comprometera com a defesa dos direitos da infância. Doravante, entre os direitos fundamentais assegurados à criança, encontramos, ao lado do direito à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito, à dignidade, o direito à convivência familiar.

Ao referir-se aos direitos humanos fundamentais, Sérgio Resende de Barros assinala:

Quando se pensa em direitos humanos fundamentais o primeiro que vem à mente é o direito à vida. Mas, já neste instante primário se evidencia o quão fundamental é a família, pois no mundo dos seres humanos -e, portanto, dos direitos humanos, -não se pode pensar a vida sem pensar a família. Uma implica a outra, necessariamente, a partir do nascimento e ao longo do desenvolvimento do ser humano. Daí que –também necessariamente – o direito à vida implica o direito à família, fundando-o primordialmente: como o primeiro na ordem jurídica da família, o mais fundamental dos direitos de família.

A família, até pouco tempo, era vista como um espaço inviolável. Os fatos que aconteciam no ambiente privado não interessavam à sociedade e ao Estado, reservando-se a intervenção estatal aos casos muito graves, que contrariavam práticas culturais aceitas até então. À criança, muito pouco restava, porquanto, somente a partir de 1988, adquiriu, frente ao ordenamento jurídico, a condição de sujeito de direitos.

O avanço ocorrido em várias áreas do conhecimento, em especial, nas últimas décadas, tem apontado para a importância dos cuidados que devem ser dispensados à criança, visando o seu desenvolvimento saudável, não só na área física, como social e psíquica. Sabe-se, na atualidade, que as agressões ambientais, “entendidas como desde as provocadas por um vírus sobre o embrião até a violência de um pai sobre o bebê, a morte prematura de um dos pais ou o abuso sexual – podem danificar, em variados graus de intensidade, tanto o aparelho psicológico como, conseqüentemente, o genético, dada à plasticidade do sistema nervoso central”.

A Constituição Federal de 1988, ao atribuir à família, à sociedade e ao poder público a responsabilidade de assegurar à criança a gama de direitos fundamentais que arrola em seu artigo 227, acerta o passo com a história, possibilitando, em nosso país, o desenvolvimento de políticas e programas voltados à prevenção primária.

Nos dias atuais, muitas demandas que são levadas ao Poder Judiciário decorrem da carência de investimentos nas políticas sociais básicas de atendimento à criança e à família, em que pesem as disposições constitucionais e infraconstitucionais existentes. Passa o Judiciário, por vezes, a ser o depositário das crises e dos conflitos pessoais e interpessoais, bem como da falência do próprio Estado, sobrecarregando as Varas de Família e da Infância e Juventude com problemas que fogem às suas alçadas de atuação e de resolução, ao menos, em curto prazo.

Sabe-se que a violência intrafamiliar e os maus-tratos praticados contra a criança “atingem milhares de crianças e adolescentes e não costumam obedecer a algum nível sócio-cultural específico, como se pode pensar”.  Ademais, na história particular das famílias, observa-se que as gerações repetem padrões de relacionamento, muitas vezes de forma inconsciente, necessitando a intervenção de um terceiro, que possa compreender e interromper o padrão abusivo estabelecido.

É provável que, em muitos casos de separação e divórcio, bem como em disputas de guarda e regulamentação de visitas que tramitam nas Varas de Família, esteja-se diante de situações que encobrem violência contra as crianças e os adolescentes pertencentes a essas famílias, sem que as partes tenham consciência da gravidade de seu agir, ou, mesmo conscientes, deixam de revelá-los aos profissionais, fazendo com que nada conste nos autos do processo, impedindo, em conseqüência, a adoção de medidas de proteção àqueles que ainda não atingiram os dezoito anos de idade. Nesses casos, a correta avaliação da situação da família, em especial, da criança, inclusive quanto ao seu desenvolvimento físico, social e psíquico ; a redobrada atenção aos fatos que se sucedem no tramitar do feito, bem como a compreensão das relações familiares, constituem-se em instrumentos que não podem ser desprezados pelo sistema de Justiça. Não é mais possível que os profissionais envolvidos em disputas de família examinem as questões postas, sob o âmbito restrito da pretensão dos adultos, sem averiguar, com atenção, a real situação das crianças pertencentes a essas famílias.

Enquanto nas Varas da Infância e Juventude já se criou uma cultura de proteção à infância, nas Varas de Família, com certa freqüência, ainda se trabalha de forma não condizente com a Doutrina da Proteção Integral. Limita-se, como já se disse, a resolver os conflitos vividos pelos adultos, deixando de investigar, ainda que de forma sumária, a situação das crianças envolvidas. Fruto da ordem constitucional em vigor, “o que está em questão, no caso da guarda dos filhos menores, é qual dos cônjuges tem melhores condições de exercê-la - e não quem é o culpado pela separação: se um ou ambos”.

Aplicar o princípio do melhor interesse da criança, nas disputas de guarda, não se constitui tarefa fácil. Como saber o que é melhor para a criança, quando ambos os pais pleiteiam, em Juízo, a guarda do filho? Não estariam, aparentemente, ambas as partes buscando o melhor para a criança?

Confundir o interesse do adulto com o da criança é fato corriqueiro nos conflitos que são levados às Varas de Família, sendo os filhos “colocados como epicentro da disputa paterna, como se fossem meros objetos numa relação de forçada convivência em que se lhes renega a posição de sujeito de direitos”.  A criança, via de regra, tem poucas oportunidades de ser ouvida, em que pese o disposto no artigo 28, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao passo que os adultos, através de seus advogados, são responsáveis pelos pleitos que vêm expressos ao longo da demanda judicial, valendo referir que são freqüentes  “as decisões que priorizam os interesses e condições dos pais” , em detrimento da melhor alternativa para a criança.

Como saber quem tem melhores condições para o desempenho da guarda? Como regulamentar adequadamente as visitas do filho ao (à) pai/mãe? Somente através de uma criteriosa avaliação, com o auxílio de uma equipe interdisciplinar, que permita conhecer a realidade da família e o tipo de vínculo estabelecido entre a criança e cada um dos genitores, poderá, ao lado da escuta da criança, fornecer elementos mais seguros à decisão judicial que efetivamente venha contemplar o melhor interesse do infante.

Desde muito cedo, os bebês devem merecer cuidados especiais por parte dos pais e cuidadores, como alerta a autora de recente publicação:

...bebês que recebem cuidado altamente irregular são mais inclinados a tornarem-se muito dependentes e ansiosos na vida adulta; crianças que recebem cuidado persistentemente irresponsivo são mais propensas do que outras a calarem-se emocionalmente e a agirem de forma a manter os outros a uma certa distância; por outro lado, crianças que recebem cuidado consistente e responsivo nos primeiros anos de vida tendem a desenvolver grandes habilidades sociais mais tarde.

Como se vê, os fatos a serem avaliados, nem sempre são de fácil percepção e constatação: exigem uma visão interdisciplinar e uma capacitação específica dos profissionais. Advogados, técnicos, promotores e procuradores de Justiça, assim como os Magistrados, devem estar cientes das múltiplas facetas que compõem as relações familiares, especialmente porque, “muitas vezes, o rompimento da vida em comum altera as habilidades que as pessoas têm para cuidar dos filhos” , gerando um cenário com novas configurações nas relações entre pais e filhos. De nada adianta, nesses casos, trazer aos autos exclusivamente provas do relacionamento da época em que a família não experimentava o conflito da separação. Há que se resgatar a história familiar, a fim de que a decisão judicial possa alcançar a efetividade que todos almejam. Caso contrário, corre-se o risco de a decisão “exacerbar ainda mais o conflito entre os pais, com resultados incertos, mantendo climas tensos e hostis, conduzindo a uma insatisfação geral” , com prejuízos ao desenvolvimento da criança. Nesse sentido, vale lembrar que “os conflitos sociais e os de família são os mais sensíveis; não se resolvem com um decreto judicial, que somente pode advir do último escolho”; “(...) os conflitos de família podem compor-se tecnicamente pela sentença, mas com ela não se solucionam. Pelo contrário, com freqüência, o comando judicial, muitas vezes, agrava um problema sem resolvê-lo”.

O ciclo da vida humana vem marcado por crises de transição que também são experimentadas pelo grupo familiar, constituindo-se “pontos de maior vulnerabilidade”, momentos em que podem aparecer os sintomas, inclusive sob a forma de litígios, valendo lembrar que uma demanda judicial pode, muitas vezes, “contribuir para cronificar um conflito ou engessar o processo evolutivo de uma família”.  Dentro desse contexto, torna-se essencial uma ampla compreensão das relações humanas, por parte dos profissionais, a fim de que efetivamente possam “auxiliar a desfazer estes nós”.

Pode-se afirmar, na linguagem jurídica, “que o processo judicial é um ritual, sob o comando do juiz, que ocupa a importante função de representante da lei e simbolicamente também de ‘um pai’, que vem, principalmente, fazer um corte, pôr fim, (sentença) a uma demanda, amigável ou litigiosa, instalando uma nova fase da vida das pessoas”.

Importante distinguir, dentro desse cenário, os aspectos sócio-culturais que caracterizam a família que chega ao sistema de Justiça, valendo referir que, em função do contexto social, “a criança ocupa diferentes posições na família: na classe média, em geral, é o centro de atenção e de investimento familiar, enquanto, nas camadas populares, filhos e pais estão lado a lado na luta pela sobrevivência”.

Não é mais possível desvincular, diante da sistemática atual, o Direito de Família do Direito da Criança e do Adolescente. Ambos formam uma teia, um emaranhado de conexões que não podem ser desmembrados na atuação dos profissionais do Direito, em especial, nos casos que são submetidos à apreciação do Juízo de Família , valendo lembrar que a positivação dos direitos peculiares da criança e do adolescente “caracteriza benfazeja revolução em nosso ordenamento jurídico”, modificando “a estrutura sistemática e principiológica do anterior e clássico direito de família”.

Urge que os profissionais, além da habilidade legal para o exercício da profissão, sejam portadores de competência técnica específica para a função a ser desempenhada, eis que, na atualidade, “o tradicional papel do advogado litigante cede lugar ao do advogado negociador, que, juntamente com o juiz conciliador, aponta ao interessado o modo mais conveniente para obter a solução do conflito que lhe aflige” , respeitando, sempre, em qualquer hipótese, o direito da criança. Nenhum outro campo do Direito exige do jurista, do legislador, do advogado, do técnico, do magistrado e do membro do Ministério Público, em igual grau, “uma mente aberta, suscetível para absorver as modificações e pulsações sociais que os rodeiam” , porquanto, o profissional que não acompanha a evolução social, jurídica e científica do seu tempo se conduzirá em desarmonia com as necessidades das partes envolvidas no litígio, comprometendo sobremaneira a efetividade da prestação jurisdicional, causando um desserviço à sociedade.

Digna de registro, por inovadora e atenta aos ditames constitucionais, é a decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível n. 70002351161, originária de Canoas, que condenou o guardião de fato a pagar alimentos a adolescente, com doze anos de idade, que se encontrava aos seus cuidados desde os dois anos, sem que tivesse adotado as providências necessárias à regulamentação da adoção, como havia se comprometido com a mãe biológica do alimentando.

Os autos tratam de pedido de alimentos, promovido pela ex-companheira e pelo adolescente, pretendendo ver o varão condenado a pagar alimentos, tanto à ex-companheira como ao adolescente. Em primeiro grau, o Juízo de Família deixou de condenar o alimentante a alcançar a verba alimentar à ex-companheira, porquanto detentora de pensão que recebia desde antes de constituir a união estável; bem como ao adolescente, em razão de não ser ele o responsável legal pelo alimentando, uma vez que não havia guarda, tutela ou adoção previamente deferida.

O adolescente, irresignado, apela da sentença de primeiro grau, vindo o feito a ser distribuído à 7ª Câmara Cível do TJRGS. A Câmara, por unanimidade, entendeu em dar provimento parcial ao recurso, a fim de condenar o alimentante a pagar pensão alimentícia ao adolescente. Segundo os autos, o casal, na vigência da união estável, recebeu da genitora a criança, então com dois anos de idade, assumindo o compromisso de pleitear em Juízo a sua adoção. Passam-se dez anos, rompe-se a união estável sem que os companheiros tivessem sequer buscado a guarda judicial da criança. Diante das dificuldades da companheira para manter o adolescente, ajuíza a ação de alimentos, alegando que o companheiro era o provedor da família, não tendo condições de, sozinha, arcar com as despesas para a sua manutenção. Em sessão de julgamento, ocorrida em 18.04.01, tendo como Relator o eminente Des. José Carlos Teixeira Giorgis, a Câmara, por unanimidade, decidiu:

ALIMENTOS. UNIÃO ESTÁVEL. NECESSIDADE. MENOR. GUARDA DE FATO. RELAÇÃO DE AFETO. (...) É coerente fixar alimentos para o menor, que há dez anos está sob a guarda de fato do casal, que tinha a intenção de adotá-lo, considerando a relação de afeto entre eles e a necessidade do pensionamento. Apelo provido, em parte.

Antes da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, certamente não encontraríamos decisões do porte da acima mencionada, com evidente priorização do direito do adolescente sobre os interesses do adulto, como demonstra o acórdão oriundo da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Dentro da cadeia de transformações que são vivenciadas pelo novo Direito de Família, neste nascer de século, o mais importante parece ser a percepção que começa a florescer no meio jurídico no sentido da necessidade de se buscar uma capacitação mais específica para os profissionais lidarem com os dramas familiares, porquanto, na maioria das universidades, ainda não se encontram disponíveis em seus currículos noções sobre os direitos da criança, condizentes com o atual Direito de Família.

Do profissional que atua na área do Direito de Família, exige-se, cada vez mais, além do conhecimento dos institutos contemplados no Código Civil, a compreensão do funcionamento da estrutura psíquica, porquanto, “compreender o funcionamento da estrutura psíquica é compreender também a estrutura do litígio conjugal, em que o processo judicial se torna, muitas vezes, uma verdadeira história de degradação do outro”.

O tratamento dispensado às famílias que chegam ao sistema de Justiça em muito influenciará o seu destino, ocasionando um efeito importante nas pessoas envolvidas no conflito, “mesmo que de forma não perceptível, inconsciente”, porquanto, para as partes, o Estado e o Poder Judiciário são representantes da figura paterna.

É comum, nas demandas que chegam ao Juízo de Família, observar a inclusão da criança na conflitiva do casal, mostrando-se necessário, nestes casos,

auxiliar os pais num trabalho de discriminação entre seus conflitos conjugais mal elaborados e as necessidades da criança. Estas incluem a possibilidade de seguir tendo uma relação de continuidade, o que envolve uma relação de confiança e proteção que será proporcionada, se puder ser valorizado aquele que representa para a criança uma figura de apego. Num segundo momento, é preciso auxiliar os pais a reconhecerem a importância do papel de ambos na criação dos filhos.

Ponto a ser destacado é a forma de colher a oitiva da criança nos feitos em que está em jogo a alteração de guarda ou mesmo a regulamentação de visitas a um dos genitores. Dispõe o artigo 28, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que, sempre que possível, a criança ou o adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião considerada. Como realizar a oitiva da criança nos feitos em que os genitores arduamente disputam a guarda dos filhos ou mesmo a regulamentação de visitas? Como preservar a criança da violência que sobre ela recai nestas oportunidades, em especial, pela imaturidade, inabilidade e incapacidade dos pais em proteger os filhos?

Além de buscar conhecimentos advindos de outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a psicanálise, a sociologia, devem os profissionais agir com criatividade e competência, utilizando os recursos disponíveis para o fim de preservar, ao máximo, a integridade da criança.

Neste contexto, vale lembrar a iniciativa desenvolvida junto à 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível n. 70002444693, em que foi Relator o eminente Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.

Tratava-se de acirrada disputa de regulamentação de visitas, requerida pelo pai, sobre quem recaía uma suspeita de abuso sexual à filha, uma criança, do sexo feminino, com sete anos de idade. No curso do volumoso processo, a criança já havia sido submetida a inúmeras avaliações, realizadas por diversos profissionais que, de forma isolada, haviam emitido seus laudos. Por ocasião do julgamento, por não se mostrar suficientemente esclarecida a alegada suspeita, por proposição do Ministério Público, através da Procuradora de Justiça Ângela Célia Paim Garrido, devidamente acolhida pelas partes, entendeu a Câmara de suspender o julgamento do recurso, a fim de que as partes fossem submetidas à avaliação, agora por equipe interprofissional, sob a coordenação de Médica Psiquiatra nomeada no ato.

Composta a equipe, integrada por duas psiquiatras, uma pediatra, uma ginecologista infanto-puberal, três assistentes sociais e igual número de psicólogas, partiram os profissionais para a realização da tarefa que incluía a avaliação do casal e de suas respectivas famílias de origem, bem como da menina, com posterior elaboração de parecer técnico, contendo “diagnósticos, indicações terapêuticas e sugestões quanto ao regime de visitas” (fl. 260 dos autos da Apelação Cível n. 70002444693, 7ª Câmara Cível do TJRGS). Durante a avaliação, a criança foi entrevistada apenas por uma das Médicas Psiquiatras que, mediante expressa autorização dos responsáveis, filmou a entrevista, possibilitando que o material viesse a ser analisado pela segunda Perita Psiquiatra, evitando novas e desnecessárias exposições da criança.

A avaliação, firmada pela equipe interprofissional, após elencar várias justificativas, recomenda:

a) Estabelecimento de um processo progressivo de visitas paternas, assistidas por um profissional previamente indicado;

b) Estabelecimento de um esforço importante de proteção urgente da menina através da limitação imediata do massacre representado pelas reiteradas exposições da mesma a processos de avaliação;

c) Acompanhamento psicoterápico individual do pai, da mãe e da filha comprovado;

d) Atenção especial aos vínculos mãe-filha e pai-filha deverá ser considerada no curso dos atendimentos individuais e do acompanhamento das visitas, com vistas a avaliar a necessidade de uma intervenção de terapia familiar;

e) Embora a criança não deva decidir quanto ao regime de visitação, ela deve ser ouvida na sua forma, ritmo e momento;

f) Avaliação do curso do desenvolvimento das visitas pelo profissional assistente. A ele caberá: observar o comportamento e as reações tanto da criança quanto de seus pais; orientar possíveis manejos durante o contato; informar e orientar aos demais profissionais e familiares as reações da menina, que julgar importantes; avaliar os benefícios dos encontros e sua evolução na qualidade de interação; interromper os contatos ou sugerir sua interrupção sempre que considerar que estes encontros não estão sendo nem adequados nem benéficos para a menina;

g) O pai não pode ficar sozinho com a filha, considerando o desgaste deste vínculo, o sentimento de ameaça, desproteção e animosidade da menina. Este prazo deverá ser mantido até o momento do próximo relatório do profissional que acompanha a família.

Sempre que o pai estiver em contato com a menina o profissional assistente deverá estar presente.

O relato do profissional que acompanha as visitas deverá ser feito de forma oficial, no período de 18 meses, aproximadamente, e através deste será avaliado o seguimento do trabalho junto a esta família.

Feitos envolvendo suspeita de violência sexual intrafamiliar costumam vir revestidos de dificuldades de avaliação, especialmente em decorrência do mecanismo de negação, impedindo, muitas vezes, que se possa definir a melhor maneira de oferecer eficaz proteção à criança.

A experiência relatada mostra alternativa que deveria ser mais explorada pelo sistema de Justiça, isto é, a utilização de equipes interdisciplinares, integradas por profissionais capacitados, ou equipes interdisciplinares, vinculadas a Instituições reconhecidas na comunidade e/ou ligadas a Centros Hospitalares ou Instituições de Ensino, devidamente reconhecidas.

Aspecto relevante diz respeito, ainda, à relação que se estabelece entre a criança a ser periciada e o perito, em especial, o perito psiquiatra, para assinalar que a relação com a criança e o adolescente nunca é diádica (o periciando e o psiquiatra), e sim poliádica, uma vez que “entram em cena outros atores sociais relacionados com a criança, como pais, cuidadores, instituições, etc.”  De outro lado, não se mostrará ética a conduta do psiquiatra-perito que, em disputas de guarda dos filhos, por exemplo, ouvir apenas uma das partes ou só a criança, valendo lembrar que “é necessário que as partes se sintam adequadamente contempladas para darem sua versão, em termos de tempo e de número de sessões” , explicando, com clareza, mesmo para crianças pequenas, o objetivo e a natureza dos encontros de avaliação.

De outra banda, cabe salientar que não bastam os laudos e pareceres se limitarem a apontar os problemas detectados na família examinada, cabendo aos técnicos, dentro de sua esfera de atuação, oferecer propostas de encaminhamento ao conflito que desembocou no sistema de Justiça, sob pena de servirem unicamente para acirrar os ânimos e atribuir a culpa de um ou de outro, negligenciando, mais uma vez, a proteção da criança.

O novo Direito de Família descortina inúmeras e valiosas oportunidades de garantia dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente, estando, nas mãos dos profissionais que atuam nos conflitos de família a responsabilidade de dar eficácia aos direitos que a Constituição Federal de 1988, com tanta sensatez, lhes outorgou.



CONCLUSÃO

A família, assim como o novo Direito de Família, passa por profundas modificações, acompanhando a evolução do conhecimento científico, dos movimentos sociais e políticos, bem como do processo de globalização, exigindo uma capacitação maior dos profissionais que integram o sistema de Justiça, a fim de que suas ações tenham eficácia na vida daqueles que vêem seus traumas expostos ao Juízo de Família.

Na atualidade, não há como desvincular o novo Direito de Família do Direito da Criança e do Adolescente, urgindo que se invista em ações interdisciplinares, sem perder de vista a aplicação dos princípios da dignidade humana e da prioridade absoluta à infância, em atenção ao comando constitucional vigente.

Novos investimentos devem ser dirigidos na formação e na capacitação dos profissionais que se dedicam a atuar nas áreas de Família e da Criança e do Adolescente, alargando as fronteiras do Direito para abranger, também, a compreensão da alma humana, por demais atuante nos conflitos que são levados ao sistema de Justiça.

Não há como retroceder em face do atual estágio de desenvolvimento da civilização. Doravante, os esforços dos profissionais que integram o sistema de Justiça devem se voltar a acompanhar os avanços verificados na área dos direitos humanos fundamentais, a começar pelo direito à convivência familiar, em especial, à criança e ao adolescente, sem o que contribuiremos muito mais para o descompasso dos modernos paradigmas que estruturam o Estado Democrático de Direito do que para o bem-estar da civilização.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n. 70002444693, Sétima Câmara Cível, Relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, 13 de março de 2002, Porto Alegre.

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